Os jogos digitais apresentam uma ampla gama de variações em termos de design, objetivos e mecânicas, e essas características desempenham um papel crucial em seu potencial terapêutico. Os jogos digitais podem ser classificados em duas categorias principais: jogos sérios e jogos comerciais. Os jogos sérios, projetados com finalidades específicas, como educação ou terapia, têm sido cada vez mais utilizados em intervenções psicológicas e neuropsicológicas, sendo aplicados em contextos de reabilitação cognitiva, desenvolvimento socioemocional e treinamento de habilidades específicas. Esses jogos são desenhados de forma a promover o aprendizado de novas habilidades ou comportamentos, enquanto ao mesmo tempo fornecem um ambiente seguro para a prática e o erro.
Por outro lado, os jogos comerciais, embora originalmente desenvolvidos para entretenimento, podem também trazer benefícios terapêuticos, quando adequadamente selecionados para objetivos clínicos. Estudos mostram que jogos como “Minecraft” e “Among Us” têm potencial para melhorar habilidades de resolução de problemas e aumentar a cooperação e empatia entre os jogadores, especialmente em ambientes de colaboração online. Além disso, os jogos que exigem coordenação motora fina e tomada de decisões rápidas podem favorecer o desenvolvimento de habilidades psicomotoras e cognitivas, contribuindo para a reabilitação e estimulação cognitiva de pacientes com diversas condições neurológicas.
Os jogos digitais podem, portanto, ser uma ferramenta poderosa no contexto terapêutico, especialmente quando alinhados aos objetivos de intervenção do terapeuta. Seja por meio de jogos especificamente projetados para tratar condições cognitivas, emocionais ou sociais, ou pelo uso adaptado de jogos comerciais, os benefícios terapêuticos são amplamente reconhecidos na literatura.
A seguir, abordo uma análise detalhada de jogos digitais aplicáveis à psicoterapia, com foco em suas implicações neuropsicológicas e comportamentais, bem como em suas áreas cerebrais estimuladas.
Dentre os diferentes tipos de jogos, aqueles focados na resolução de problemas, como A Little to the Left e Portal, destacam-se por incentivar o pensamento crítico e a criatividade. Esses jogos promovem habilidades como a resolução de problemas, o planejamento e o raciocínio lógico, fundamentais em intervenções que buscam melhorar as funções executivas. Eles também estimulam a memória de trabalho e a flexibilidade cognitiva, permitindo que o jogador desenvolva estratégias de enfrentamento e adaptação a desafios.
Outro tipo de jogo com grande potencial terapêutico são os jogos narrativos, como Undertale e Celeste, que utilizam histórias envolventes para explorar temas emocionais profundos, como resiliência, empatia e autoaceitação. Através da imersão em narrativas complexas, os jogadores têm a oportunidade de refletir sobre suas próprias experiências e emoções, promovendo o autoconhecimento e o desenvolvimento emocional. Além disso, esses jogos incentivam a empatia ao apresentar diferentes perspectivas emocionais e reforçam a capacidade de superar desafios, promovendo a resiliência.
Os jogos de simulação social, como Among Us e The Sims, também desempenham um papel importante no desenvolvimento de habilidades sociais. Esses jogos permitem que os jogadores participem de interações sociais simuladas, o que é particularmente útil para indivíduos com Transtorno do Espectro Autista (TEA) ou Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). Através desses jogos, os jogadores podem praticar comunicação assertiva e resolução de conflitos em um ambiente seguro e controlado, melhorando suas habilidades de interação social e entendimento das regras sociais.
A realidade virtual, por sua vez, tem se destacado em contextos terapêuticos com jogos como Sparx e Mindlight, que utilizam a imersão para tratar sintomas de depressão e ansiedade. Através de ambientes virtuais, os indivíduos podem enfrentar gradualmente situações que geram ansiedade ou medo, utilizando técnicas de relaxamento e mindfulness em um ambiente seguro e repetível. Esses jogos têm se mostrado eficazes na redução de sintomas de fobia e ansiedade, bem como no desenvolvimento de habilidades de enfrentamento para lidar com o estresse.
Além disso, jogos de ação e aventura, como Minecraft, promovem a criatividade e o pensamento estratégico ao permitir que os jogadores explorem e criem em mundos abertos. Esses jogos não apenas estimulam a imaginação, mas também incentivam a cooperação e a comunicação em cenários multiplayer, fortalecendo as habilidades sociais e de colaboração.
Jogos de treinamento cognitivo, como Missão 2050 e Lumosity, têm sido amplamente utilizados para melhorar funções cognitivas específicas, como memória, atenção e velocidade de processamento. Projetados para reabilitação neuropsicológica, esses jogos são eficazes no tratamento de deficiências cognitivas resultantes de lesões cerebrais, envelhecimento ou transtornos do desenvolvimento, ajudando os indivíduos a recuperar e aprimorar suas capacidades cognitivas de forma envolvente e motivadora.
Portal 2, conhecido por sua ênfase em resolução de problemas e cooperação. Estudos apontam que esse tipo de atividade estimula o córtex pré-frontal, responsável pelo planejamento e pela resolução de problemas complexos, além do córtex parietal, que está envolvido na percepção espacial e no controle motor. O modo cooperativo de Portal 2 também oferece uma oportunidade única para trabalhar habilidades de comunicação e cooperação, essenciais para o desenvolvimento de habilidades socioemocionais. Durante a psicoterapia, o jogo pode ser explorado para observar como o paciente lida com desafios e frustrações, e como ele ajusta seu pensamento estratégico conforme os obstáculos surgem, promovendo flexibilidade cognitiva.
Outro jogo que se destaca é Gris, que aborda diretamente temas de regulação emocional e superação de traumas. O envolvimento do sistema límbico, especialmente a amígdala, durante experiências emocionais intensas no jogo, ajuda os pacientes a reconhecer e processar suas próprias emoções. O terapeuta pode utilizar o jogo como uma ferramenta para discutir a metáfora visual da jornada de cura apresentada em Gris, promovendo resiliência emocional e reflexão sobre perdas e lutas pessoais.
Tetris é um jogo clássico que tem sido amplamente estudado no contexto da atenção e do controle de impulsos. Pesquisas revelam que ele ativa o córtex parietal, que controla a percepção espacial, e o córtex pré-frontal, envolvido no controle inibitório e na tomada de decisões sob pressão. Em contextos terapêuticos, Tetris pode ser particularmente útil para pacientes que estão lidando com transtornos de estresse pós-traumático (TEPT), já que estudos demonstram sua eficácia em reduzir a intensidade de memórias traumáticas e flashbacks, funcionando como um mecanismo de distração que desvia a atenção da dor emocional.
Monument Valley é um jogo que exige que os jogadores manipulem estruturas impossíveis, promovendo o desenvolvimento do pensamento criativo e da flexibilidade cognitiva. Esse processo envolve tanto o córtex pré-frontal, associado à resolução de problemas, quanto o giro fusiforme, que está relacionado à percepção visual. Durante a psicoterapia, Monument Valley pode ser usado para ajudar os pacientes a desenvolver a capacidade de resolver problemas complexos de forma mais fluida e menos rígida, ao mesmo tempo em que trabalha o relaxamento e o foco, úteis para pacientes com ansiedade ou dificuldades de concentração.
Outro jogo que aborda a saúde mental de forma mais direta é Hellblade: Senua’s Sacrifice. Esse jogo se aprofunda em questões como psicose e trauma, oferecendo uma perspectiva visceral da experiência de viver com essas condições. A ativação do córtex pré-frontal e do sistema límbico durante o jogo permite que o paciente experimente de forma simbólica o enfrentamento de seus próprios medos e traumas, ajudando na regulação emocional e na construção de resiliência. Na psicoterapia, Hellblade pode ser utilizado para explorar temas de aceitação e enfrentamento de dificuldades emocionais, promovendo o autoconhecimento e a autoaceitação.
The Witness é um jogo focado em resolução de quebra-cabeças, que exige atenção plena e concentração. Pesquisas indicam que esse tipo de atividade ativa o córtex parietal e o córtex pré-frontal, áreas do cérebro envolvidas na percepção visual e na resolução de problemas. Durante a psicoterapia, The Witness pode ser usado para trabalhar a prática de mindfulness, ao exigir que o jogador esteja completamente presente no momento. Essa prática é especialmente benéfica para pacientes que lutam com distrações constantes ou que enfrentam altos níveis de estresse e ansiedade.
Stardew Valley tem foco no relaxamento, planejamento, habilidades sociais. Área cerebral envolvida é o Córtex pré-frontal (planejamento e tomada de decisão), hipocampo (memória de longo prazo), sistema límbico (regulação emocional). Pode ser usado como uma ferramenta para promover habilidades de relaxamento e regulação emocional, ao mesmo tempo que trabalha o planejamento e a construção de relacionamentos dentro do jogo. O terapeuta pode incentivar o paciente a refletir sobre como ele equilibra o trabalho e o descanso no jogo, e como essas habilidades podem ser aplicadas em sua vida real.
Keep Talking and Nobody Explodes tem o foco na comunicação, trabalho em equipe, controle do estresse. Área cerebral envolvida é o córtex pré-frontal (resolução de problemas, controle do estresse), córtex parietal (atenção dividida). Este jogo pode ser usado para melhorar a comunicação e o trabalho sob pressão. Ele exige que os jogadores resolvam puzzles complexos com instruções dadas por outra pessoa, o que pode ser explorado em terapia para trabalhar assertividade e colaboração, além de controlar respostas automáticas ao estresse.
O jogo Florence explora a dinâmica dos relacionamentos humanos, proporcionando uma experiência narrativa centrada nas emoções e na comunicação interpessoal. O jogo estimula a junção temporoparietal, uma área do cérebro associada à empatia e à cognição social. Em sessões terapêuticas, Florence pode ser usado para explorar questões de relacionamento e comunicação emocional, permitindo ao paciente refletir sobre suas próprias experiências e desafios em relacionamentos pessoais.
Outro jogo que envolve a tomada de decisões sob pressão é FTL: Faster Than Light, que se baseia em gerenciamento de crises e resolução de problemas estratégicos. O envolvimento do córtex pré-frontal e do sistema límbico durante momentos de alta pressão no jogo pode ser útil para observar como o paciente lida com o estresse e a multitarefa. FTL pode ser utilizado na psicoterapia para explorar estratégias de enfrentamento e gestão de emoções em situações difíceis, incentivando o paciente a desenvolver resiliência e habilidades de tomada de decisão eficazes.
This War of Mine é um jogo que explora dilemas morais e situações extremas de sobrevivência. Ele ativa o córtex pré-frontal durante a tomada de decisões éticas, além de estimular a empatia através da ativação da junção temporoparietal. O jogo oferece ao terapeuta a oportunidade de discutir questões éticas e emocionais, explorando como o paciente lida com a culpa, o sacrifício e o medo em situações extremas.
Kerbal Space Program é outro exemplo de jogo que promove o planejamento e a paciência. A ativação do córtex parietal e do córtex pré-frontal durante o planejamento e a execução de missões espaciais pode ajudar os pacientes a desenvolver a capacidade de resolução de problemas e persistência diante de desafios. Em contextos terapêuticos, esse jogo pode ser usado para trabalhar a paciência e a resiliência, ensinando ao paciente que o fracasso é parte do processo de aprendizado.
Finalmente, Figment oferece uma experiência única de enfrentamento de medos e traumas. O jogo explora a mente humana e desafia os jogadores a superar seus “monstros” internos, simbolizando desafios emocionais. O envolvimento do sistema límbico e do córtex pré-frontal durante essas experiências ajuda o paciente a trabalhar sua resiliência emocional e o enfrentamento de medos. Figment pode ser uma ferramenta para pacientes que estão lidando com ansiedade e traumas, permitindo-lhes explorar seus medos em um ambiente seguro e controlado, ao mesmo tempo em que desenvolvem habilidades de enfrentamento.
Parte do texto retirado da minha dissertação para obtenção do grau de Mestre em Psicologia Clínica e da Saúde: ”O uso de jogos digitais como ferramenta em psicoterapia online para adultos neurodiversos” (2025). Debora Cristini Lopes Machado dos Santos.